outubro 20, 2006

No planeta dos macacos...

Quem conhece a história grandiosa da CP reconhecerá, por certo, que ela tem vindo a ser malbaratada nos últimos anos pela contratação de “cérebros” generosamente incompetentes. Existem em grandes quantidades – para desgraça de todos nós! – e as suas aptidões não vão muito para além de conseguir distinguir que entre o caril e um carril só o primeiro pode comer-se. Enfim, são uma subespécie biológica do Homo sapiens sapiens, mas, ao contrário da espécie genuína, estes são duplamente estúpidos. E, por onde passam, deixam marcas profundas da sua confrangedora incapacidade. Espojam-se em gabinetes cuidadosamente identificados com o nome de baptismo, mas tratam-se e fazem questão de serem tratados por “doutor” ou “engenheiro”, consoante as situações. O género é variável, sendo frequente na espécie feminina assistir-se a um dos mais repugnantes actos do ser humano: a traição. Por último, em ambos os casos, a honestidade intelectual e a verticalidade são palavras que estes “cérebros” deglutiram numa qualquer refeição algures entre a adolescência e a idade adulta.
Vem este preâmbulo a propósito do mais recente episódio protagonizado pela CP depois de o Jornal de Barcelos ter conseguido provar categoricamente que aquela empresa fez durante mais de vinte anos aditamentos ilegais à Tarifa Geral de Transportes (TGT). Nada mais, nada menos do que a lei que regula as condições do contrato de transporte ferroviário de passageiros. Resumidamente, a CP passou a cobrar pelos bilhetes mais do que a legislação lhe confere. Para que se perceba a relação entre uma coisa e outra, esta investigação é da minha autoria.
Ora, para reforçar ainda mais aquela tese, o Jornal de Barcelos solicitou à empresa ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) as “provas do crime”. Que são, tão simplesmente, “documentos de acesso livre e generalizado” a que qualquer cidadão tem o direito de aceder. E o que fez a CP? Respondeu dizendo que (os mais comprometedores) não podem ser divulgados porque contêm “regras internas não susceptíveis de divulgação”; que outros pertencem a um departamento que “já não existe há décadas”, e que outros ainda, precisamente os aditamentos ilegais que a CP fez à TGT durante mais de duas décadas, não passam de uma invenção do autor deste texto. Mas para dar mostras de boa vontade e transparência, disponibilizou-se para ceder “centenas de páginas” de outros documentos de conteúdo absolutamente inócuo. E, por estes, exigiu “o prévio pagamento (...) do custo das respectivas fotocópias, ao custo unitário de 0,20€”.
A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), na sequência da queixa apresentada pelo Jornal de Barcelos contra a CP, é peremptória no seu parecer: a empresa não tem base legal para recusar fornecer os documentos; não pode exigir o seu pagamento prévio e está a cobrar por cada fotocópia dez vezes mais do que a lei lhe permite. Mas o mais hilariante de tudo isto é que o Gabinete Jurídico e Contencioso da CP argumenta que se trata de um valor “meramente simbólico”. Ou seja, cobrar na moeda antiga 40$00 por uma fotocópia A4 a p/b é, para estes “cérebros” da CP, um valor perfeitamente desprezível.
A CP e todas as outras companhias que lhe antecederam nos últimos 150 anos merecem a admiração e o reconhecimento públicos pelo extraordinário contributo que dispensaram a Portugal. Na verdade, o comboio foi o motor do desenvolvimento económico, social e cultural de um país com que Fontes Pereira de Melo sonhava. Mais moderno, mais europeu, mais instruído... Enfim, mais progressista. E em toda esta história a CP teve, como se disse, uma função preponderante, na qual os ferroviários prestaram um grandioso e inestimável tributo. Foram eles, através de grandes sacrifícios e de muita abnegação, o garante do sucesso em que o transporte ferroviário depressa se transformou.
Não se pode, pois, tolerar que uns quantos troles-boles desejosos de mostrar serviço para “agradar ao chefe” ponham agora em causa o prestígio e a dignidade de uma empresa como a CP. Recusar aceitar que há mais de vinte anos a transportadora ferroviária nacional tem vindo a introduzir alterações na TGT “à revelia da lei”, é grave, como já o reconheceu a própria secretária de Estado dos Transportes. Mas que, depois disso, e para impedir o acesso a informação de grande interesse público, se pretenda continuar a não respeitar as leis da República, é caso que não pode ficar impune.
É que não obstante a CADA ter considerado infundadas e inoportunas as explicações apresentadas pelo Gabinete Jurídico e Contencioso da CP, este “mantém a sua posição” de não acatar as recomendações daquela Comissão. A ver vamos até quando...

PAULO VILA

outubro 16, 2006

Os carrascos da memória ferroviária

Fosse vivo Fontes Pereira de Melo e cobriria de ridículo o bando de indigentes que tão-somente resolveu ignorar as comemorações dos 150 anos do caminho-de-ferro português. E contrariamente ao que se possa pensar, este tipo de linguagem é, até, muito complacente face à dimensão do sucedido.
Exceptuando o documentário do jornalista Paulo Costa que será exibido a 26 de Outubro na RTP, três dias antes da data em que se assinala o tricinquentenário sobre a inauguração do troço Lisboa-Carregado, tudo o resto não passam de iniciativas balofas. E se a REFER ainda procura convencer-nos de que as actividades que tem vindo a desenvolver – alguém deu por alguma coisa? – são as mais adequadas e fazem justiça ao momento, a CP nem esse esforço faz. Herdeira de um passado histórico glorioso, a transportadora nacional optou antes por “ver passar a carruagem”. Comportamento típico de quem despreza a memória colectiva e acha que o que faz está bem feito. É o apedeutismo em todo o seu esplendor…
E, já agora, o que dizer do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações que desde o início do ano promete divulgar um programa de comemorações que ainda ninguém conhece? Fraca gente esta a quem foi confiada a tarefa de fazer dos 150 anos do caminho-de-ferro português mais do que um dia de festa. Mas, também, um momento de homenagem a todos aqueles que, como disse Jorge Palma, “desde o princípio do sonho (…) construíram, têm vindo a construir, a tornar realidade, e à volta do qual tantos outros sonhos, os nossos – os dos viajantes – se foram concretizando”.

PAULO VILA