dezembro 21, 2006

A condenação da CP por acidente em passagem de nível

Entendeu a jurisprudência condenar recentemente a CP ao pagamento de uma indemnização por morte causada em acidente ocorrido numa passagem de nível. À época, ainda era a transportadora nacional quem geria a infra-estrutura ferroviária. Daí, esta condenação obrigar a CP e não a REFER, o actual gestor.
Em traços gerais, tal decisão resulta do facto, menciona o acórdão, de a referida passagem de nível não ter garantido ao automobilista um atravessamento em segurança. Ao que parece, por falta de condições de visibilidade. Note-se que este argumento já foi utilizado mais vezes em julgamentos de outros casos, mas nunca até então – pelo menos que eu saiba – fora fundamento para uma condenação da CP e/ou da REFER. E muito bem, ainda que essas absolvições tenham sido alicerçadas em factos diferentes daqueles que aqui pretendo partilhar. Nomeadamente, porque o comboio goza de “prioridade absoluta” nas passagens de nível.
Não devendo estar em causa, nesta como em situações semelhantes, o direito a indemnizações pecuniárias quando respeitados todos os procedimentos de segurança por parte dos automobilistas, importa pois saber quem verdadeiramente tem o dever de as pagar.
É um facto que a CP e as companhias que a antecederam não tiveram qualquer responsabilidade quando se construíram desenfreadamente milhares de passagens de nível por todo o país. Ainda há poucos anos, na linha de Guimarães, existia uma média de dez passagens de nível por quilómetro. Uma marca sem paralelo em qualquer outro país europeu. Em 1976, nos 3.570 quilómetros de linhas-férreas existiam cerca de 7.600 passagens de nível – uma média superior a duas PN/km. Mil e quinhentas eram públicas guardadas, 4.000 públicas desguarnecidas e 2.100 particulares.
Mas não obstante a perturbação e insegurança causadas às circulações por tão elevado número de atravessamentos, naquela mesma data a CP mantinha nos seus quadros de pessoal aproximadamente 2.000 guardas para guarnecer as 1.500 passagens de nível públicas. Ou seja, 7% dos efectivos da CP asseguravam tarefas que em nada beneficiavam o transporte ferroviário. Para além destes encargos, outros foram igualmente suportados pela CP sempre que surgiam novas passagens de nível públicas guardadas, uma vez que era necessário construir habitações e instalar cancelas.
E se os utilizadores da rodovia foram os únicos beneficiários desta incessante perversão, agora continuam a sê-lo desde o momento em que os sucessivos governos depositaram na CP, e mais recentemente na REFER, a responsabilidade quase exclusiva de suprimir em tempo recorde as passagens de nível. Na verdade, o Plano de Supressão de Passagens de Nível aprovado a 18 de Dezembro de 1997 determina que cabe à REFER, ex-Junta Autónoma das Estradas e autarquias locais desenvolverem acções conjuntas para eliminar estes atravessamentos. No entanto, “nos últimos cinco anos” foi a REFER quem “executou cerca de 97% das acções de supressão de passagens de nível”, lembra muito justamente aquela empresa.
Quer isto dizer que quem acumula maiores obrigações no sentido de reduzir o número de acidentes em passagens de nível optou antes pela sempre cómoda estratégia de “deixar que os outros o façam”. E esses, os que efectivamente não tiveram qualquer responsabilidade na implantação a esmo de milhares de passagens de nível, investiram nos últimos cinco anos 180 milhões de euros na supressão de 1.045 atravessamentos e na reclassificação de outros 295. Graças a este esforço financeiro, que deveria ter sido suportado por quem gere a rede viária e não a ferroviária, Portugal tem agora menos de uma passagem de nível por cada dois quilómetros de via-férrea – uma densidade já inferior à da União Europeia.
No entanto, quem julgou o caso apresentado no início deste texto não teve em linha de conta nada disto e, por conseguinte, errou duplamente. Por um lado, porque o pagamento da indemnização deveria de ser também suportado pelo município onde ocorreu o acidente e, caso se trate de uma estrada nacional, pela Estradas de Portugal. Pelo outro, como pode o Tribunal responsabilizar exclusivamente a CP por este acidente se já em 1930 – há 76 anos! – um decreto impedia que estrada alguma seria construída com passagem de nível?
Posto isto, quem, afinal, durante todos estes anos teve um comportamento negligente e irresponsável? Não é, pois, razoável a conclusão do Supremo Tribunal de Justiça quando este diz que “uma entidade, como o caminho de ferro, a quem é concedido o privilégio de prioridade absoluta nas passagens de nível, tem de assegurar que o cumprimento das regras de direito estradal de quem vai atravessar qualquer delas é suficiente para garantir uma travessia sem perigo de acidente".

PAULO VILA