janeiro 30, 2004

TGV – assim não, obrigado!

Nos últimos meses tem-se assistido a uma histeria colectiva em torno do processo de instalação em Portugal da já pomposamente proclamada “rede ferroviária para o século XXI”. Convém lembrar, porém, que só a magnanimidade desregrada da nossa classe política justificaria tal designação, tantas são as contradições e os erros estratégicos que circundam o plano de dotar o país com umas quantas (quase não importa sequer o número) linhas de alta velocidade.
Muito antes da discussão sobre se a escolha deveria recair sobre o “T deitado”, o “Pi deitado”, o “L” ou ainda que fosse todo o alfabeto, na oblíqua ou na diagonal, pouco importa, haveria uma outra a fazer que não foi feita, talvez, até, deliberadamente. Refiro-me, naturalmente, às condições da actual rede ferroviária nacional e ao serviço prestado pelos diversos operadores – muito particularmente pela CP. Sem esta reflexão – mais em Portugal do que em qualquer outro país da União Europeia –, nenhum projecto de alta velocidade faz sentido ou pode ser convincente e seriamente defendido. Não tenhamos ilusões sobre isto ainda que, na falta de melhores argumentos, possamos ser acusados de retrógrados, conformistas ou de, como tantas vezes se ouve da boca dos pseudo-progressistas, sermos “contra o progresso”. Neste caso, convém lembrar, o progresso faz-se melhorando as condições de mobilidade de todos, repito, de todos os portugueses e não, apenas, de parte deles, sob pena de se continuar, assim, a servir apenas os que já se encontram melhor servidos.
Deitado ou ao alto, por Badajoz ou por Cáceres, o que na prática nos estão a “vender” são comboios e linhas que permitem velocidades na ordem dos 350 km/hora. Ora, de pouco importa se em 2013 vai ser possível fazer a viagem entre Lisboa e o Porto em 60 minutos se, depois, para chegar a Viana do Castelo são necessárias duas horas para percorrer 80 quilómetros! O que apenas se reconhece, dolosamente, em todo este processo, é que no “sistema ferroviário existente” a quota de mercado é “cada vez menor”; que o mesmo sistema é “desajustado” e tende para o “desaparecimento”.
Permitir-me-ei, a este propósito, introduzir aqui duas ideias deixadas recentemente num jornal diário pelo anterior e pelo actual presidente do conselho de administração da CP. Começando pelo primeiro, Crisóstomo Teixeira, agora liberto da mordaça de um cargo cuja nomeação governamental sugere o silêncio como regra de ouro, chamou “a atenção para o facto de estarmos perante projectos extraordinariamente caros e, pior do que isso, capazes de gerar enormes prejuízos, ano após ano, caso não sejam bem sucedidos na captação de clientes”. Já Martins de Brito, referindo-se à importância da rede convencional, assegura que esta “terá de desempenhar uma importante função de alimentação da rede de alta velocidade e contribuir decididamente para a sua viabilidade económica”.
Recuperemos, agora, a desastrosa e contraditória entrevista do ministro das Obras Públicas, Transportes e Habitação, Carmona Rodrigues, publicada no mesmo jornal a 8 de Novembro de 2003. Talvez perturbado com o facto de ter andado a anunciar traçados para os quais ainda não tem sequer dinheiro, o senhor ministro disse então que o investimento a ser feito na “rede convencional” a partir de 2006 “não será aquele (...) que houve até agora”. Posto isto, não há razões para não levarmos muito a sério esta promessa porque, para quem conhece minimamente o que tem vindo a acontecer com o transporte ferroviário português, sabe o quanto as palavras do senhor ministro, e de todos os que o antecederam desde a nacionalização da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, em 1975, são mais que um desígnio, são irrevogáveis.
Lembremo-nos, por último, que em menos de 25 anos se reduziu a rede ferroviária nacional para quase dois terços e que, da existente, mais de metade está ainda por duplicar e electrificar – já para não falar da longa extensão em que a circulação ferroviária é feita por cantonamento telefónico; do número incalculável de estações e apeadeiros que encerraram... –, e veremos que as “premissas da nova rede ferroviária” não se coadunam com o proclamado “combate à interioridade e às assimetrias regionais”. Pena é que a revolta das populações que têm vindo a ser afectadas pela irresponsabilidade e incúria destas decisões não vá para além de uns quantos desabafos e meia dúzia de ameaças.
Assim sendo, quaisquer que sejam os projectos para dotar Portugal de uma rede ferroviária de alta velocidade deixam de fazer sentido perante tantos erros, omissões e contradições por parte de quem nos quer colocar no “pelotão da frente” começando a construir a casa pelo telhado. Por último, uma interrogação: estará a União Europeia disposta a financiar um projecto desta envergadura quando, por exemplo, a modernização da linha do Norte, financiada maioritariamente por fundos comunitários, se arrasta há anos e nem sequer existe uma data plausível para a sua conclusão?

PAULO VILA

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