outubro 28, 2006

Tributo a Fontes Pereira de Melo

Para se poder ter uma dimensão mais exacta da importância que o comboio teve no desenvolvimento socioeconómico das populações precisamos tão-somente de reter o seguinte dado: até ao seu aparecimento, cerca de 95% dos habitantes da Península Ibérica morriam sem nunca terem conhecido outra região para além daquela onde nasceram. E o que torna esta percentagem num valor ainda mais surpreendente é o facto de apenas terem passado 150 anos sobre a fundação do transporte ferroviário em Portugal. Naquela época, escreve a socióloga Maria Filomena Mónica, “de Lisboa era mais fácil chegar-se a Southampton do que a Bragança”. Vivia-se passivamente no obscurantismo. Não se conhecia o país, muito menos o mundo. E até a generalidade da classe política prescindia do progresso e do desenvolvimento cultural em favor de uma pretensa estabilidade social. Por sua vez, a Igreja via nos funcionários do caminho-de-ferro um bando de hereges incorrigíveis que era preciso combater.
Foi neste contexto de um Portugal aparentemente sem futuro que o génio, a coragem e a ambição de António Maria de Fontes Pereira de Melo se revelaram. Avesso à resignação, ao fatalismo e à incapacidade, é para com este homem que os portugueses têm uma enorme dívida de gratidão. Foi acusado de “despesismo” e de “regar o país com libras”, mas, após a sua morte, lembra Filomena Mónica, “todos reconheciam que Fontes transformara, de forma irreversível, o Portugal da segunda metade de oitocentos”. O jovem D. Pedro V, que via em Fontes Pereira de Melo um político “insuportável” e “arrogante”, mas partilhava com ele a obsessão pelos caminhos-de-ferro, cedo reconheceu que era na via-férrea que estava “a salvação económica do país”. Felizmente, a coragem do primeiro e a sagacidade do segundo triunfaram, lançando o país para a prosperidade.
É certo que, de uma forma ou de outra, outros houve que também contribuíram para a implantação das vias-férreas em Portugal. Mas os detractores do “progresso” reclamado por Fontes constituíam a maioria. Almeida Garrett, por exemplo, exortava o Governo a ter “juízo”. O autor de Viagens na Minha Terra repudiava as estradas “de metal” – “...que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito da nossa terra”. Mas, mesmo depois de construído, eis o que escreveu Teixeira de Pascoais, já em meados do século XX, sobre uma viagem por caminho-de-ferro: “As suas demoradas paragens nas estações indignavam-me contra a morosidade nacional, que até se manifestava nos comboios! Se a luz fosse portuguesa, não gastaria oito minutos, mas oito meses, para chegar do sol à terra!”. Já Alexandre Herculano, que curiosamente até considerava Fontes Pereira de Melo “uma mediocridade ambiciosa”, sabia reconhecer as virtudes do comboio. “Não, a máquina a vapor é um dom do céu, um instrumento de progresso legítimo, uma fonte de cómodos e gozos para o género humano, como o foram o arado, o navio, a imprensa, para os homens que os viram nascer”, dizia, respondendo a Bulhão Pato, outro maldizente dos projectos do general Fontes.
Não é, pois, rigorosa a afirmação recente de Luís Farinha, director-adjunto da revista História, quando diz que “Fontes Pereira de Melo já encontrou o país ansioso pela novidade de correr à estonteante velocidade de 30 quilómetros hora”. Na verdade, o fundador do Ministério das Obras Públicas não só teve de enfrentar o negativismo da oposição e, até, de alguns membros do seu próprio partido, como também a ira dos “senhores rurais”, dos “almocreves” e dos “camponeses”, dos “credores do Estado” e dos “párocos”. Enfim, Portugal preferia as estradas ao caminho-de-ferro, mas a convicção profunda de Fontes acabou por prevalecer.
De tal modo que, quando morreu, Portugal já dispunha de 1.500 kms de vias-férreas. E a título exemplificativo, note-se o facto de ter sido Fontes Pereira de Melo, enquanto presidiu ou teve lugar nos governos, quem planeou 1.775,7 kms de linhas, contra os apenas 377,6 kms. idealizados pelos executivos de que não fez parte. O mesmo é dizer que, percentualmente, Fontes projectou 82,5% dos 2.153 kms. de caminhos-de-ferro construídos ou traçados entre 1856 e 1886. Era desta forma que combatia a oposição e silenciava os críticos.
E à medida que a rede de caminhos-de-ferro se expandia, o país abriu também portas para o seu desenvolvimento cultural. Assistiu-se a uma autêntica “revolução intelectual”. Eça de Queirós, outrora muito céptico quando às virtudes da locomotiva a vapor, deixara-se então persuadir. “Pelos caminhos-de-ferro, que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha, (...) torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários...”, escreveu Eça por ocasião da morte de Antero de Quental (1891). Rendeu-se por completo, anos depois, quando compôs esse prodígio literário – pelo menos para os entusiastas do caminho-de-ferro – que dá pelo nome de A Cidade e as Serras.
Fontes Pereira de Melo morreu pobre e na solidão. Enquanto viveu, “destacou-se pela honestidade” e “o país gozou de uma liberdade de expressão ímpar”, recorda Filomena Mónica, a autora da sua biografia política. Por tudo isto, Fontes Pereira de Melo deve ser hoje lembrado e homenageado veementemente.

Lisboa, 28.OUT.2006 – 150 anos depois da primeira viagem ferroviária
PAULO VILA

outubro 26, 2006

Moeda comemorativa

O Comboio Português apresenta em primeira-mão as imagens da moeda comemorativa do tricinquentenário da inauguração da linha-férrea Lisboa – Carregado. Esta edição tem um valor facial de 8€ e será lançada durante o mês de Novembro.
A cunhagem desta moeda foi aprovada na reunião de Conselho de Ministros de 23 de Fevereiro de 2006, com o intuito de “assinalar os ‘150 Anos da primeira Linha-férrea, Lisboa – Carregado’, que se comemoram no presente ano”. Da responsabilidade da Imprensa Nacional - Casa da Moeda, S.A., pretende-se deste modo marcar “a relevância do acontecimento na história do desenvolvimento económico e social do País”.

PAULO VILA

outubro 23, 2006

Empresa acumulou em 31 dias o equivalente a 85 de atraso

Comboios da CP “andam até cair”

Milhares de minutos de atraso. Avarias de toda a espécie, às centenas. Falta de limpeza, ao ponto de existirem baratas nos bares e nas casas de banho dos Inter-Cidades e Alfa Pendulares. Comboios que perdem peças e outros que se incendeiam. Descarrilamentos, supressões, falta de material operacional… Este é o quotidiano da CP, analisado através de documentos internos da própria empresa. Uma reportagem onde se demonstra, dando eco às palavras de alguns dos trabalhadores, que os comboios da CP, afinal, “andam até cair”. Os passageiros são, inevitavelmente, os mais sacrificados.

Envelhecido e causticado, as condições, já por si débeis, do parque de material circulante da CP – algum com 30, 40 e 50 anos de serviço – têm-se vindo a agravar perigosamente nos últimos meses. Isto porque, como a manutenção se revela insuficiente e, noutros casos, nem sequer acontece, tem originado sérios constrangimentos à circulação dos comboios. Colocando, por vezes, a integridade física dos passageiros em risco e provocando-lhes graves incómodos.
Uma das primeiras consequências deste desmazelo (e a mais visível, também) reflecte-se na pontualidade das circulações. De acordo com os registos da própria empresa, em apenas um mês – de 20 de Junho a 20 de Julho (período seleccionado aleatoriamente) – os comboios da CP acumularam um atraso de 122.929 minutos. O equivalente a 85 dias. E, num só dia, chegou a atingir os 8.320! Já no período entre 21 de Julho e 20 de Agosto, os atrasos na CP chegaram aos 103.822 minutos, o que equivale a 72 dias de retardamentos. Este problema é tanto mais grave se tivermos em conta que nestes números não estão incluídos os atrasos provocados pelos afrouxamentos existentes em toda a rede ferroviária, como actualmente sucede, por exemplo, na ponte Eiffel, em Viana do Castelo. Ali, devido às obras de substituição do tabuleiro rodoviário, todos os comboios atrasam, no mínimo, entre quatro e cinco minutos.
E se é um facto que uma boa parte destes atrasos se verificam na CP Carga, onde praticamente nenhum comboio circula à tabela, as restantes unidades de negócio não estão imunes a este problema. São disso exemplo a CP Porto e a CP Lisboa, que apesar de disporem de automotoras adquiridas recentemente ou, então, modernizadas, registaram naquele primeiro período, respectivamente, 2.193 e 2.303 minutos de atraso.
Nesta situação está também a CP Longo Curso, que tem a seu cargo os comboios internacionais, Inter-Cidades e Alfa Pendulares. Ainda assim, em 31 dias de exploração os comboios desta unidade de negócio registaram atrasos de 13.938 minutos. Ou, dito de outra forma, apesar daqueles comboios gozarem de prioridade sobre todos os outros, em apenas um mês contabilizaram o equivalente a dez dias de atraso. Recorde-se, a este propósito, que em 29/07/1999 “foi superiormente determinado que os comboios Alfas, Inter-Cidades e Inter-Regionais para a linha do Norte, em Porto-Campanhã, não garantem enlace a quaisquer outros comboios das linhas do Minho, Douro ou Porto S. Bento”. Apesar da insistência, a CP recusou-se a responder a várias questões e a confirmar se esta norma ainda vigora e a que outras estações se aplica, mas sabe-se que continuam a ser dadas instruções em vários pontos da rede para evitar retardamentos nas partidas daqueles comboios. Mesmo assim, os atrasos nos serviços de excelência da CP parecem ser inevitáveis.
A situação mais preocupante vive-se na CP Regional onde, tendencialmente, o serviço prestado pela CP é muito menos atractivo e eficaz. Aqui, entrar num comboio pode significar não chegar a horas a casa ou ao emprego, tantas são as ocorrências e os atrasos verificados nas circulações desta unidade. No mês em análise, os registos dão conta de retardamentos de 25.039 minutos. Aconteceu, até, de em apenas um dia os comboios da CP Regional acumularem 2.339 minutos de atraso. Regra geral, aqui, o único direito que assiste aos passageiros é a resignação. A CP apenas prevê compensações por atraso para os passageiros dos comboios internacionais, Alfa Pendulares e Inter-Cidades e, mesmo assim, o reembolso, no caso das duas últimas categorias, só é concedido em 50% se o atraso for “de 60 até 90 minutos”, e “é de 100%” no “caso de atraso superior a 90 minutos”.

Anomalias nos comboios são aos milhares

E embora uma parte destes atrasos seja motivada pelo estado e condições em que a infra-estrutura é disponibilizada ao operador – da exclusiva responsabilidade da REFER –, o certo é que, na sua grande maioria, eles acontecem muito por culpa das condições em que o material circulante se encontra. E, de novo, a falta de manutenção é a principal causa.
Ao longo das 682 páginas de registos consultados para elaborar esta reportagem, foram identificadas 2.613 perturbações nas circulações da transportadora nacional. E, uma vez mais, a CP Carga, CP Regional e CP Longo Curso encabeçam a lista destas ocorrências. A unidade responsável pelo transporte de mercadorias soma 812 incidentes; a CP Longo Curso, um expressivo e inquietante registo de 539 ocorrências, enquanto a CP Regional eleva para 899 o número de anomalias verificadas num só mês. Igualmente devido ao melhor estado do material circulante, a CP Lisboa (238) e a CP Porto (125) são as unidades que apresentam menor registo de ocorrências. De resto, o maior problema em todos estes mais de dois milhares e meio de incidentes é que 445 dizem respeito a “avarias com material motor”. Ou seja, de entre todas as anomalias verificadas, cerca de um sexto corresponde a avarias com um grau de empanagem muito elevado. De mais a mais, nestes documentos há registos de muitas outras “avarias com material motor” que, no entanto, nem sequer foram contabilizadas por terem sido solucionadas por acção dos maquinistas. Nesta contagem também não estão incluídas as “avarias com material rebocado”, que são inúmeras.
Problemas com a climatização e WC’s, portas bloqueadas, iluminação deficiente e fugas de ar e água estão entre as avarias mais frequentes. E nem os Alfa Pendulares e os Inter-Cidades escapam a este flagelo tendo, por vezes, no caso dos primeiros, que ser substituídos por outras unidades já sobre a hora da partida. Há, também, diversos registos de avarias nos sistemas de pendulação activa dos Alfas, que, regra geral, por só serem possíveis de solucionar nas oficinas, são colocados “fora de serviço”. Ora, o bom desempenho do Alfa Pendular no que diz respeito a velocidades mais elevadas depende, fundamentalmente, da pendulação activa [sistema que auxilia o comboio a inclinar-se em curva] se encontrar ou não ao serviço. E, quando não está, os atrasos sucedem-se, uma vez que a velocidade média tem que ser reduzida em 30 quilómetros.

Passageiros – os mais sacrificados

Não é possível, contudo, saber com exactidão qual o verdadeiro número de avarias daquele tipo. É que, em muitos casos, como elas persistem e não são reparadas, os agentes não as voltam a comunicar e, como tal, não existem registos. Aliás, mesmo quando são avarias graves, ainda que comunicadas, a falta de material obriga a que circulem em condições pouco recomendáveis e passíveis de provocar grandes transtornos aos passageiros. Foi o que aconteceu a 17 de Julho na linha da Beira Baixa, com uma automotora que efectuou cinco comboios com apenas um motor. Lê-se no registo que “a utilização desta automotora nos referidos comboios” foi “justificada pelo excesso de [veículos] imobilizados.” Há relatos de várias situações como esta.
Por outro lado, são muitos os casos em que “devido ao excesso de imobilizações de material” de diversas séries, é necessário alterar-lhe a rotação ou, até, suprimir os comboios. No dia 23 de Junho, por exemplo, na sequência de uma avaria que originou 420 minutos de atraso e, ainda, “devido (…) ao excesso de imobilizações de material automotor na Figueira da Foz, foi necessário deslocar” uma automotora “do Entroncamento para a Figueira da Foz (…) para garantir todos os comboios da linha do Oeste e do Ramal da Figueira.” Ainda pelo mesmo motivo, e também no dia 17 de Julho, na linha da Beira Baixa, a CP teve que recorrer ao aluguer de vários táxis e autocarros para assegurar as ligações dos nove comboios que “foram suprimidos em todo o trajecto”. Também noutras linhas há registos do aluguer de vários autocarros e táxis para efectuarem “transbordo rodoviário” motivado pelo “excesso de imobilizações” de material circulante.
Acontece, também, que noutras situações o mesmo comboio é feito com diversos tipos de material, o que obriga os passageiros a fazer transbordos a meio da viagem, causando-lhes incómodos e atrasos irrecuperáveis.
As linhas urbanas têm sido igualmente afectadas por estas anomalias. “Por falta de material operacional”, no dia 11 de Julho, foram suprimidos uma circulação especial e dez comboios da “família S. Pedro”, na linha de Cascais. Das cinco unidades que ali prestam serviço, uma apresentava “avaria no conversor auxiliar”, outra estava “a tornear rodados”, uma outra tinha “avaria no ar condicionado” e as restantes, uma “devido a incêndio” e a outra por razões não especificadas, encontravam-se nas oficinas. A opção pela supressão dos comboios é, um pouco por toda a rede, uma solução recorrente. Mas, para além dos transtornos que causa aos passageiros, obriga a empresa a fretar ao exterior meios para garantir os transbordos rodoviários.
E se o material de que a CP dispõe é manifestamente insuficiente para assegurar todas as circulações, como se tem verificado, sempre que é necessário prestar socorro aos comboios que ficam retidos em plena via por motivo de avaria, a espera prolonga-se incessantemente por várias horas. Foi o que sucedeu no dia 20 de Julho, na linha do Leste, após um comboio regional ter ficado retido no apeadeiro de Santa Eulália. A avaria aconteceu às 5h52, mas a automotora só foi retirada dali às 10h21. Quatro horas e 29 minutos depois… E, como sempre que tal acontece, naquelas linhas ou troços não é possível fazer circular outras composições, os comboios têm de ser suprimidos e substituídos por autocarros e táxis.
Ainda assim, logo que chegou à CP, António Ramalho, o anterior presidente da CP, começou a vender material circulante à Argentina para realizar alguns milhões de euros de receita. Com isto, entre 2003 e 2005, o material motor e automotor afecto à exploração sofreu uma diminuição de 17%. No mesmo período, o índice de fiabilidade das locomotivas e automotoras a diesel decresceu substancialmente.

Incêndios, perda de peças, descarrilamentos, falta de limpeza...

Na origem de todos estes constrangimentos na circulação dos comboios está, como ficou exemplificado, a falta de manutenção, subjacente a uma lógica do “deixa andar”. Em tom irónico, alguns dos funcionários abordados durante esta reportagem optam antes por dizer que os comboios da CP “andam presos por arames”. Mas, em alguns casos, a avaliar pelos exemplos recolhidos, alguns nem por arames estão presos.
No dia 6 de Julho, em Alverca, na linha do Norte, por exemplo, os passageiros de um Alfa Pendular tiveram que mudar de comboio “devido à placa do sistema de ar condicionado” do Alfa em que seguiam “se ter soltado” e danificado a catenária e a própria composição. A este propósito, diz o relatório daquele dia que, no local, “encontrava-se uma chapa de grandes dimensões que se concluiu fazer parte do sistema de ar condicionado” do referido comboio.
Alguns dias depois, na linha de Cascais, “um cliente” informou a tripulação que, durante um cruzamento, “caiu para a via um vidro” de uma das carruagens. A outra automotora ficou com “dois vidros partidos” e, “por falta de material de reserva, foram suprimidos” quatro comboios.
A atestar as acusações feitas pelos próprios funcionários, está o acidente grave verificado com um comboio de mercadorias, no dia 22 de Junho, na linha do Norte. Conta o relatório daquele dia que, na estação da Granja, uma locomotiva “perdeu (…) o reservatório de óleo e em plena ponte de S. João (…) teve princípio de incêndio dentro do compartimento de alta tensão, provocando fumo preto e tóxico.” Duas semanas depois, na linha do Sul, um Inter-Cidades “esteve retido em Setubal-Mar, das 21h06 às 22h54, devido a avaria da locomotiva”. “Ouviu-se um estrondo forte e ficou cheia de fumo”, lê-se no registo, que confirma ainda que o comboio ficou retido e a locomotiva teve que ser substituída por uma outra encaminhada de Santa Apolónia. Igualmente com um comboio de passageiros, desta feita na linha do Norte, no dia 27 de Junho um Inter-Cidades “esteve retido na estação do Entroncamento (…) para substituição da locomotiva”. A paragem foi justificada, calcule-se, pelo facto de a máquina apresentar “folga num dos bogies [rodados]”.
De tão frequentes e caricatos, as circunstâncias em que estes acidentes ocorrem bem como as suas implicações são, por vezes, até, relatadas com ironia pelos inspectores que os registam. A “locomotiva 5611 tem os retrovisores avariados na cabina 1. Um não abre, outro não fecha”, menciona o relatório. Uma outra locomotiva “só metia força se se desligasse a climatização”, e teve de ser substituída. Na mesma viagem, um Alfa Pendular circulou com “portas avariadas, a climatização só funcionava do lado direito do sentido da marcha e o forno e micro-ondas não aqueciam”. Mais: “circulava apenas com 50% de capacidade de tracção” e, no mesmo dia, já tinha “avariado em Alverca”, onde esteve retido 61 minutos.
De notar, também, que este tipo de avarias é sempre registado pelos maquinistas no “diário técnico de bordo” que acompanha os comboios para, assim, se proceder à reparação. Mas, como comprovam os registos de várias ocorrências, não obstante “já se encontrarem mencionadas” nos diários técnicos de bordo, as avarias persistem porque não são reparadas. O descuido atinge proporções de tal ordem que há registos que dão conta da existência de locomotivas a necessitarem de “mudar os cepos [calços do freio] devido ao mau estado” em que se encontram.
Por último, e a crer ainda nos registos diários de ocorrências, a falta de limpeza é comum a muitas circulações. Surgem, por isso, casos em que se procede ao envio do material circulante para a realização dos comboios “sem condições de utilização pelos clientes, com muita sujidade, revelando falta de limpeza.” Na verdade, sobretudo nos comboios regionais, é frequente as carruagens revelarem um estado de imundice tal que, por vezes, utilizar uma casa de banho é uma tarefa absolutamente impossível. Contudo, os problemas de falta de limpeza afectam também os melhores comboios da CP. Há registos de comunicações feitas pelos revisores alertando para a existência de baratas nos bares dos Alfa Pendulares e nos WC’s das carruagens dos Inter-Cidades.
Já quanto a descarrilamentos, no mês em análise há registo de seis, embora nenhum deles tenha envolvido comboios de passageiros. Todos os acidentes atingiram circulações da CP Carga, tendo o mais grave provocado o descarrilamento de 11 vagões à saída da estação de Pegões, na linha do Alentejo. Aqui, dada a gravidade e proporções do acidente, a circulação esteve suspensa durante dois dias para reparação da via e catenária. Três dias depois, a 18 de Julho, em Fontela, na linha do Oeste, duas locomotivas e dois vagões descarrilaram ao passar por uma agulha. Na linha do Minho, a tripulação de um comboio de passageiros “sentiu uma forte trepidação” à entrada do túnel de Seixas. Feitas as verificações, concluiu-se que a “cabeça” do carril tinha partido numa extensão “de mais ou menos 30 centímetros”.
No mesmo período, facto positivo, há somente registo de apenas quatro assaltos no interior de comboios. Dois na linha de Sintra, e outros dois na de Cascais. No dia 29 de Junho, dá-se conta de que à passagem de um comboio urbano em Arentim, no ramal de Braga, a circulação “foi atingida por um tiro de arma (pistola?), tendo o projéctil perfurado a chapa” de uma das portas. E entre várias situações de que resultaram vidros partidos, há uma que se destaca pelo caricato. Nos dias 5, 7, 14 e 20 de Julho, na linha do Norte, ao cruzar em plena via, o mesmo comboio de mercadorias “formado por vagões abertos, vazios, de transporte de areia”, partiu os vidros frontais de quatro automotoras da CP Porto. Mais estranho ainda, é que de todas as vezes “não foi notada qualquer anormalidade na composição” que provocou a quebra dos vidros.
Foram também contabilizados 102 actos de vandalismo, na sua maioria por apedrejamento e pinturas de grafittis no material circulante. Neste último caso, a vandalização ocorreu maioritariamente “durante a noite” e, embora não seja feita essa referência, sabe-se que aconteceu por falta de vigilância. Valença do Minho, onde diverso material foi graffitado, é um desses exemplos.

Material circulante não resiste às altas temperaturas

A debilidade do material circulante da CP é, pois, de tal ordem que até a temperatura do ar tem grande influência sobre os comboios. Comparando o número de avarias com a temperatura máxima registada em Portugal naquele período, verifica-se que a relação é directamente proporcional. Senão, atente-se no dia em que se registou o valor mais elevado da temperatura do ar, a 12 de Julho, de acordo com os dados disponibilizados pelo Instituto Geofísico do Infante D. Luiz. Aqui, o termómetro chegou aos 36 ºC (valores médios da temperatura máxima em todo o país) e, tanto a CP Regional como a CP Longo Curso, apresentaram o número mais elevado de ocorrências de todo o mês. As avarias com o material motor atingiram, também naquele dia, o valor mais alto de sempre: 28. No dia anterior, os 32,2 ºC foram suficientes para, tanto a CP Lisboa como a CP Carga, registarem recordes no número de perturbações, razão pela qual as avarias com o material motor chegaram também às 28. Por oposição, o dia do mês em análise onde as ocorrências se verificaram em menor número foi também aquele onde se registaram os valores mais baixos da temperatura: 21,6 ºC. Neste dia, em 25 de Junho, o número de ocorrências verificado em todas as unidades de negócio foi de apenas 34, havendo somente a registar seis avarias com o material motor. Este valor subiu para 8, no dia 20 de Junho, altura em que a temperatura não ultrapassou os 23,6 ºC.
E é extensa a frota de material circulante da CP que, por culpa do desgaste e da falta de manutenção, fraqueja sempre que a temperatura se eleva para além dos valores habituais. Nas linhas do Algarve, Beira Baixa e Douro, as automotoras que ali prestam serviço circulam constantemente com apenas um motor devido às altas temperaturas. E, por vezes, até o que fica a funcionar soçobra, tal é o esforço a que é submetido. Recentemente, na linha do Douro, um comboio procedente da Régua, formado por duas automotoras, chegou ao Porto às 21h30 com as luzes totalmente apagadas e mais de meia hora de atraso. Tudo porque, devido à temperatura elevada, os motores de uma das automotoras avariaram e, como tal, teve que ser rebocada. Sem que aquela produzisse ar nem energia, a que ficou em funcionamento só suportou o esforço após o sistema de iluminação ter sido colocado fora de serviço. Caso contrário, ficaria sem comandos para prosseguir a viagem.
“Ao que chegou a CP”, é o comentário mais vezes repetido pelas dezenas de ferroviários contactados para esta reportagem ao longo dos últimos meses.

Causas resultam da “estratégia” delineada por António Ramalho

Todos estes casos são uma consequência directa da gestão de António Ramalho que, para não onerar os custos com a exploração ferroviária, racionalizou os gastos com a manutenção. Os resultados desta medida não foram, contudo, devidamente ponderados e os efeitos têm-se revelado confrangedores e perigosos. Citando o próprio Ramalho durante a apresentação das contas do exercício, em Abril passado, pode também dizer-se que este é o “resultado das políticas de contenção implementadas em 2005”.
Assim que chegou à CP, em Setembro de 2004, António Ramalho comprometeu-se a “assegurar um resultado operacional equilibrado num prazo de cinco anos” e a fazer da CP “a melhor empresa de transporte ferroviário da Península Ibérica”. O “resultado operacional equilibrado”, dizia o ex-presidente, passava por, em apenas cinco anos, reduzir a zero o défice com a exploração ferroviária. Ou seja, as receitas teriam, no mínimo, que cobrir todos os encargos resultantes do transporte de passageiros e mercadorias.
Em 2005, único ano completo de António Ramalho na CP, a empresa perdeu mais três milhões de passageiros, o que representou uma quebra importante nas receitas. Foi também anunciado que “a CP Longo Curso tornou-se na primeira unidade de negócio a atingir o ‘breakeven’ operacional. A taxa de cobertura dos custos operacionais saldou-se em 102%, tendo o resultado operacional atingido 1,1 milhões de euros”, disse-se. Porém, o ex-presidente faltou à verdade já que, como o próprio reconheceu numa reunião de altos quadros a 22 de Junho, esta unidade de negócio não atingiu aqueles resultados, mas antes teve um prejuízo de 100 mil euros. O défice de passageiros transportados por quilómetros também se agravou. Ainda assim, em apenas um ano, António Ramalho arranjou forma de reduzir os prejuízos da CP em 60 milhões de euros. Tudo porque, como afirmou na referida reunião, “uma empresa sem ambição não é uma empresa é um ‘centro de dia’”.
Os gastos com a manutenção foram sempre uma preocupação de António Ramalho. De tal modo que, notícias vindas a público recentemente, responsabilizam-no pela suspensão, já no primeiro semestre deste ano, das ordens de compra à empresa que faz a manutenção dos comboios da CP – a subsidiária EMEF –, para, assim, evitar a facturação de encargos na ordem dos cinco milhões de euros. Aliás, em carta enviada em Julho último a António Ramalho, revelou o jornal Público, o ex-presidente da EMEF, Correia Távora, acusa-o de, através de uma “cosmética contabilística, prejudicar o futuro da empresa”. E vai ainda mais longe ao dizer que “há limites éticos para tudo, inclusive o de ‘mascarar’ resultados económicos de empresas que não sejam nossas”.
De resto, quer alguns dos sindicatos do sector bem como ferroviários ouvidos durante esta reportagem confirmam que o conselho de gerência presidido por António Ramalho ordenou que se procedesse a uma diminuição nos custos da manutenção. Mas, como adverte o Sindicato Nacional Democrático da Ferrovia, “Ramalho era um homem de sorte. Cardoso dos Reis nem por isso...”. É que a “estratégia” delineada pelo primeiro, que em Julho passado abandonou o cargo para presidir à Unicre, tem vindo a provocar muitos amargos de boca a Cardoso dos Reis, que entretanto o substituiu na CP.

Nota: uma eventual utilização desta informação para fins editoriais está sujeita à prévia autorização do seu autor.

PAULO VILA paulovila@mail.telepac.pt