outubro 28, 2006

Tributo a Fontes Pereira de Melo

Para se poder ter uma dimensão mais exacta da importância que o comboio teve no desenvolvimento socioeconómico das populações precisamos tão-somente de reter o seguinte dado: até ao seu aparecimento, cerca de 95% dos habitantes da Península Ibérica morriam sem nunca terem conhecido outra região para além daquela onde nasceram. E o que torna esta percentagem num valor ainda mais surpreendente é o facto de apenas terem passado 150 anos sobre a fundação do transporte ferroviário em Portugal. Naquela época, escreve a socióloga Maria Filomena Mónica, “de Lisboa era mais fácil chegar-se a Southampton do que a Bragança”. Vivia-se passivamente no obscurantismo. Não se conhecia o país, muito menos o mundo. E até a generalidade da classe política prescindia do progresso e do desenvolvimento cultural em favor de uma pretensa estabilidade social. Por sua vez, a Igreja via nos funcionários do caminho-de-ferro um bando de hereges incorrigíveis que era preciso combater.
Foi neste contexto de um Portugal aparentemente sem futuro que o génio, a coragem e a ambição de António Maria de Fontes Pereira de Melo se revelaram. Avesso à resignação, ao fatalismo e à incapacidade, é para com este homem que os portugueses têm uma enorme dívida de gratidão. Foi acusado de “despesismo” e de “regar o país com libras”, mas, após a sua morte, lembra Filomena Mónica, “todos reconheciam que Fontes transformara, de forma irreversível, o Portugal da segunda metade de oitocentos”. O jovem D. Pedro V, que via em Fontes Pereira de Melo um político “insuportável” e “arrogante”, mas partilhava com ele a obsessão pelos caminhos-de-ferro, cedo reconheceu que era na via-férrea que estava “a salvação económica do país”. Felizmente, a coragem do primeiro e a sagacidade do segundo triunfaram, lançando o país para a prosperidade.
É certo que, de uma forma ou de outra, outros houve que também contribuíram para a implantação das vias-férreas em Portugal. Mas os detractores do “progresso” reclamado por Fontes constituíam a maioria. Almeida Garrett, por exemplo, exortava o Governo a ter “juízo”. O autor de Viagens na Minha Terra repudiava as estradas “de metal” – “...que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito da nossa terra”. Mas, mesmo depois de construído, eis o que escreveu Teixeira de Pascoais, já em meados do século XX, sobre uma viagem por caminho-de-ferro: “As suas demoradas paragens nas estações indignavam-me contra a morosidade nacional, que até se manifestava nos comboios! Se a luz fosse portuguesa, não gastaria oito minutos, mas oito meses, para chegar do sol à terra!”. Já Alexandre Herculano, que curiosamente até considerava Fontes Pereira de Melo “uma mediocridade ambiciosa”, sabia reconhecer as virtudes do comboio. “Não, a máquina a vapor é um dom do céu, um instrumento de progresso legítimo, uma fonte de cómodos e gozos para o género humano, como o foram o arado, o navio, a imprensa, para os homens que os viram nascer”, dizia, respondendo a Bulhão Pato, outro maldizente dos projectos do general Fontes.
Não é, pois, rigorosa a afirmação recente de Luís Farinha, director-adjunto da revista História, quando diz que “Fontes Pereira de Melo já encontrou o país ansioso pela novidade de correr à estonteante velocidade de 30 quilómetros hora”. Na verdade, o fundador do Ministério das Obras Públicas não só teve de enfrentar o negativismo da oposição e, até, de alguns membros do seu próprio partido, como também a ira dos “senhores rurais”, dos “almocreves” e dos “camponeses”, dos “credores do Estado” e dos “párocos”. Enfim, Portugal preferia as estradas ao caminho-de-ferro, mas a convicção profunda de Fontes acabou por prevalecer.
De tal modo que, quando morreu, Portugal já dispunha de 1.500 kms de vias-férreas. E a título exemplificativo, note-se o facto de ter sido Fontes Pereira de Melo, enquanto presidiu ou teve lugar nos governos, quem planeou 1.775,7 kms de linhas, contra os apenas 377,6 kms. idealizados pelos executivos de que não fez parte. O mesmo é dizer que, percentualmente, Fontes projectou 82,5% dos 2.153 kms. de caminhos-de-ferro construídos ou traçados entre 1856 e 1886. Era desta forma que combatia a oposição e silenciava os críticos.
E à medida que a rede de caminhos-de-ferro se expandia, o país abriu também portas para o seu desenvolvimento cultural. Assistiu-se a uma autêntica “revolução intelectual”. Eça de Queirós, outrora muito céptico quando às virtudes da locomotiva a vapor, deixara-se então persuadir. “Pelos caminhos-de-ferro, que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha, (...) torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários...”, escreveu Eça por ocasião da morte de Antero de Quental (1891). Rendeu-se por completo, anos depois, quando compôs esse prodígio literário – pelo menos para os entusiastas do caminho-de-ferro – que dá pelo nome de A Cidade e as Serras.
Fontes Pereira de Melo morreu pobre e na solidão. Enquanto viveu, “destacou-se pela honestidade” e “o país gozou de uma liberdade de expressão ímpar”, recorda Filomena Mónica, a autora da sua biografia política. Por tudo isto, Fontes Pereira de Melo deve ser hoje lembrado e homenageado veementemente.

Lisboa, 28.OUT.2006 – 150 anos depois da primeira viagem ferroviária
PAULO VILA

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